24 abril 2020

Preto e "alimentação" são palavras rivais?

Desde que mudei minha alimentação, eu procurei por pessoas negras. Na verdade, eu passo boa parte do tempo procurando por pessoas negras em qualquer lugar que eu vá. Em uma alimentação sem origem animal, não seria diferente, e o MAV apareceu pra mim, nas boas voltas em que eu dava pelo Facebook, e uma das coisas que eu sempre dizia era que queria era morar dentro desse movimento pois acreditava o quanto era necessário compartilhar informações sobre uma alimentação consciente. Desde então, fiz novos amigos, realizei alguns encontros na Baixada Fluminense assim como outros locais do Rio de Janeiro. 
Recentemente, realizei uma oficina chamada "Comida de Verdade" com o objetivo de promover uma discussão sobre a política alimentar, e a relação que a gente tem com o alimento depois de estudar muitos autores negros sobre o tema.
Na aula, eu falo sobre a importância da minha mãe e minha vó nessa minha relação com a cozinha, e o quanto isso é um saber ancestral. Sempre falo o quanto elas me ensinaram a demostrar o afeto a partir do alimento, e é isso o que me motiva em compartilhar cada receita nas minhas oficinas e redes sociais.

Estou sempre buscando novas pessoas que ajudam a nos inspirar, e foi assim que eu descobri há 2 anos atrás (mais ou menos): Llaila Afrika, Dr. Sebi, Aqyil Anis e Aris Latham, pesquisando sobre saúde e alimentação natural. Estava incomodada ao pesquisar sobre alimentação e ter poucas referências. Até então, eu não fazia ideia do que era ital, alimentação viva ... (Nos últimos meses, tanto no meu insta da @afro.sou quanto no do @movimentoafrovegano, alguns irmãos tem questionado sobre alimentação ancestral e sobre a palavra ''veganismo'' ser parte de um movimento eurocêntrico). E, como disse anteriormente, acontece que existe pouco tempo  que eu tive acesso a todas as informações sobre os autores, e sobre estudos específicos e orientações alimentares para pessoas pretas, o que significa um grande privilégio pois a maioria dessas informações estão em inglês. E, de modo geral, o nosso grupo surgiu a partir de pessoas pretas que se encontram em outros grupos de alimentação sem origem animal, e pensa só, lá trás, éramos pouquíssimos, e tentando lidar com o racismo e a comparação de corpos negros a situações de exploração animal, e ao mesmo tempo, na busca de materiais, que ainda não é acessível para a maior parte da população. Desse modo, o nosso coletivo foi criado antes mesmo de encontrar autores e discussões sobre o que seria uma saúde holística africana. Eu lembro, que uma vez, na nossa página do Facebook recebi uma mensagem que éramos uma farsa, e essa pessoa não queria um diálogo, mas apenas criticar o nosso nome. Hoje eu acho engraçado, rs ... mas eu lembro que intensifiquei minhas pesquisas nesse período. Desde esse momento, comprei uns livros caros, e com dificuldade comecei a ler e dividir um pouco do que eu poderia traduzir. 

Comecei a ler no início de 2019 o livro Nutricídio - Destruição nutricional da população preta de Llaila Afrika onde resume que parte dos nossos problemas, muitos surgiram de quando nos tiraram de África, e confesso que parei de ler diversas vezes porque ás vezes acontece da gente não saber lidar com o que está escrito, ou a correria de ter que traduzir algumas palavras causa preguiça, etc.

Llaila expõe a visão de que: 

"O genocídio nutricional de pessoas Africanas, que é o Nutricídio, é uma realidade que deve ser encarada por Africanos¹." (Afrika, p.19, 1993)

Gostaria de dividir algumas reflexões, que apareceram logo quando eu iniciei a leitura desse livro. O autor descreve  a situação precária de crianças nas escolas públicas nos EUA, bem como a questão de que crianças negras passam mais tempo sozinhas do que crianças brancas, e acabam ingerindo mais produtos industrializados/geneticamente modificados,  o que não difere muito aqui no Brasil quando analisamos a estrutura da sociedade em que mães/pais em geral negros e periféricos, precisam trabalhar e deixar os filhos em casa. Fiz uma pequena correlação aqui:

Essas notícias refletem muito bem a relação que temos com o alimento e a despreocupação da discussão sobre o acesso à opções saudáveis para toda uma sociedade, principalmente, quando estamos falando de uma população preta. Não há o que falar quando parte de um governo deseja que você fique doente, pois isso faz parte de um plano maior. Não é sobre veganismo, é sobre o acesso básico a uma alimentação de qualidade. Só nos 3 primeiros meses do governo atual foram liberados mais de 100 agrotóxicos para utilização. Você fica confortável com isso? Você parou pra pensar o quanto estamos sendo envenenados, e como isso tem sido crescente nos últimos anos? O Brasil tem importação recorde de agrotóxicos no primeiro ano de Bolsonaro (alguns desses são proibidos no seu país de origem). Em 2019 foram liberados 474 produtos, a maior quantidade dos últimos 14 anos.

Bom, e quando falo aqui sobre "despreocupação", é sobre as pessoas que estão próximas a mim, e também possuem acesso à informação, e logo, podem escolher o que vão comer. Não estou falando da Rua da Prata, que fica atrás da minha casa, e as pessoas esperam pela Kombi de 1 Real. Inclusive compartilhei a foto da kombi nos stories, e a enxurrada de perguntas que eu recebi foi tanto curiosa quando simplesmente falaram: é não só comer. E, é só isso mesmo?! Sério?!

Llaila diz que alimentos são químicas, e que todas essas químicas influenciam todo o nosso corpo, de forma negativa ou positiva. Com base nisso, entende-se que pessoas pretas estão mais sensíveis a esse tipo de troca, e tem uma tendência a serem mais dependentes de ''junk food'', da tradução 'comida lixo'. Basicamente, o nutricídio envolve as diversas alterações nos alimentos que prejudicam a nossa saúde. E, que é sustentada pelas grandes corporações com o objetivo de lucrar, como sempre, e fazer com que estejamos doentes, e dependentes da indústria farmacêutica. Como se "ficar doente'' fosse algo normal, e que qualquer mal estar nos encorajasse a tomar qualquer remédio sem prescrição. Ou mesmo, utilizar aquela frase: "todo mundo morre um dia" como se fosse passe-livre para o junk food. Quantas vezes não dissemos isso?!

Entende-se que nós ''nunca vemos a nós mesmos como uma parte holística da nossa história, e que na nossa cultura a alimentação natural deve ser parte da nossa espiritualidade.'' (Afrika, p.30, 1993)

Llaila escreve que pessoas brancas produzem alimentação natural para eles mesmos, e que a própria indústria da alimentação entende que pessoas brancas sempre estarão no controle da produção de alimentos, e nós seremos apenas os consumidores. A população afro-americana, tendo em vista o que eu acompanho, está mais avançada nessas questões, não apenas sobre uma alimentação sem origem animal e/ou crudívora, mas também na questão de terapias holísticas. Aqui no Brasil, a gente pode observar o acesso aos produtos orgânicos que não estão presentes em áreas periféricas que tem a maior parte da população preta, e muito menos de terapias que trabalhem a nossa espiritualidade, para que cuidemos também da nossa saúde mental. 
Tem 4 anos mais ou menos que pude descobrir como a Yoga Kemética era uma aliada da minha saúde, graças a Emaye, e também participei de uma imersão de autoconhecimento para pessoas pretas com o Gil Santanna. Essas duas experiências com profissionais pretos, que faço questão de divulgar, me fizeram questionar sobre a minha relação com o meu corpo para além da alimentação. Acredito que aos poucos, principalmente a partir de meados de 2019, isso tem mudado, e de fato, existe aí um chamado, ou um retorno fazendo com que mais pessoas pretas se profissionalizem nessas áreas, a fim de se conectar, trocar experiências, e se cuidar. 


Na página 34 do livro Nutricide, Llaila aborda que estamos no ritmo de algumas grandes indústrias que não colocarei o nome aqui porque nós esbarramos com todas elas diariamente. Há alguns meses, eu indo pro metrô na Pavuna, dei de cara com dois novos estabelecimentos desses, com aqueles valores mínimos, e que eu tenho certeza que na corrida para o trabalho as pessoas fazem questão de parar ali, por ser uma comida fácil e barata. Eu fico pensando no quanto isso é cruel, e que naquele preço de R$2,50 poderia ser comprado um cacho de bananas ou de maçã de manhã. E, por ali mesmo, na Feirinha da Pavuna (houve uma grande confusão ...).

''A alimentação natural que acentua o ritmo da glândula pineal são os mesmos alimentos que os nossos ancestrais usaram para a criar a primeira universidade, civilização e ciência nutricional do mundo." (Afrika, p.35, 1993)


Llaila aponta que pessoas africanas dependentes de  junk food defendem seu estilo de vida de modo arrogante, e que isso é uma característica de pessoas brancas (na lógica da supremacia) quando se defende um ponto de vista em que o indivíduo se coloca como superior. O autor afirma que esse tipo de atitude também vale para os que se afirmam como os ''atentos e conscientes do que é ser africano ou obter liberdade''. E, essa é a maior dificuldade quando a gente vai discutir com a galera preta sobre uma alimentação sem origem animal. Até porque parece que quando falamos sobre "não comer carne", inconscientemente aparece aquela imagem da mulher/homem branco good vibes, com fotos de cachoeira/permacultura, paz e amor, que apenas come alimentos orgânicos, e que faz yoga/meditação - e que não passa de gente branca que se afirma como superior, e que trata parte dessa construção como "elevação de espírito", mas que acaba sendo só mais um racistinha no mundo que segura a bolsa quando eu passo do lado dela na rua.


O Movimento Afro Vegano está abrindo mais discussões sobre a alimentação e disponibilizando material para o povo preto sobre a origem da nossa alimentação ancestral que é ital (viva, a que idealizamos). Desse modo, decidimos criar o "Circuito Afro Vegano" que tem como objetivo a circulação de saberes, o encontro de empreendedores negros que trabalham com alimentação sem origem animal, alimentação ital, e saúde holística africana, como a prática de kemetic yoga. Aconteceram duas edições, a primeira no Rio de Janeiro, e a segunda em São Paulo. O nosso enquanto movimento é continuar compartilhando informações sobre alimentação, e saúde da população preta. Desse modo, o nosso coletivo segue, coordenado apenas por mulheres negras que apesar de morarem em diferentes Estados, tem como compromisso desenvolver projetos e ações que possam atingir a população preta e periférica. (Tenho muito orgulho mesmo, e babo no pouco que fazemos, e nos pequenos passos que estamos dando).

(Talvez seja uma carta desabafo, ou um artigo, ou apenas uma reflexão.
Abraços, diretamente da Baixada Fluminense, Carol).


¹ Considerar ''Africanos'' vindo diretamente de algum país da África ou da diáspora.



Escrito por

Caroline Costa
Formada em Turismo pela Universidade Federal Rural do Río de Janeiro. Pós-graduanda em Turismo Cultural no Instituto Pretos Novos.  Consultora de Viagem na @bem.afrobrasil, Cozinheira Abusada na @afro.sou.  Bailarina, que ama viagens e samba de raiz, com uma boa cervejinha.

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