05 julho 2020

O racismo estrutural e suas formas de assassinar nosso povo


No dia 2 de junho, nossa comunidade foi atingida por mais um caso terrível: o menino Miguel Otávio, de apenas 5 anos, morreu ao cair do 9° andar de um edifício parte do condomínio de luxo conhecido como "Torres Gêmeas" em Pernambuco, Recife, por negligência da patroa de sua mãe.
Mirtes Renata trabalhava de empregada doméstica e levou seu filho ao trabalho por não ter com quem deixá-lo. Em um momento do dia, Mirtes saiu para passear com o cachorro de sua patroa Sarí Corte Real, esposa de Sérgio Hacker, prefeito da cidade de Tamandaré no mesmo estado, deixando seu filho Miguel sob os cuidados dela, confiando em sua responsabilidade social.
Se Sarí não tivesse agido com negligência, e cuidado de uma criança de apenas 5 anos, Miguel estaria vivo.

Há muitas coisas nesse caso que podem ser observadas e que dizem muito sobre o nosso país colonial escravocrata. Uma mulher negra, periférica, mãe solo, tendo que trabalhar durante a pandemia mesmo não sendo um serviço essencial, e levar o filho consigo por não ter com quem deixá-lo e não ter direito a um afastamento remunerado por conta do Covid-19.
Mirtes, empregada doméstica e preta.
Sarí, a patroa branca, e esposa do prefeito da cidade.

O casal de patrões contraiu coronavírus e passaram para a Mirtes, que provavelmente não parou de trabalhar em nenhum momento durante a pandemia (Mirtes comenta que “deram a ela a opção” de ficar em casa, mas ela não podia ficar sem o dinheiro). A mãe de Mirtes também trabalhava para o casal, então temos duas gerações ao menos de mulheres pretas domésticas. Ambas eram registradas como funcionárias da prefeitura de Tamandaré, ou seja, os salários delas nem saiam do próprio bolso dos patrões, mas sim dos cofres públicos. Sarí que não se responsabiliza nem pelos cuidados do próprio cachorro, a figura típica de uma elite que depende do trabalho serviçal de outras pessoas, que não deve nem lavar uma louça, estava fazendo as unhas em casa, em plena pandemia, expondo ao perigo outra trabalhadora informal.

É possível perceber nessa introdução como os corpos negros são negligenciados de diversas formas.
Podemos ver esse descaso pelas inúmeras mortes violentas noticiadas.
George Floyd nos EUA não podendo respirar, foi o caso de maior destaque no mundo todo nos últimos tempos.
Aqui no Brasil, é uma lista longa de casos que acontecem quase que diariamente pela falta de impunidade. Jovens mortos em um carro com 111 tiros. O menino João Pedro alvejado dentro da própria casa. 80 tiros contra o carro de uma família. Uma criança morta em uma Kombi. Um jovem torturado e morto por estar na calçada esperando a entrega de uma comida.

Sarí foi presa em flagrante, mas reponde em liberdade após pagar uma fiança de 20 mil reais. 

A postura do Estado se uma mulher negra tivesse agido com negligência ao cuidar de uma criança branca seria diferente


O Estado nunca trataria o caso como “acidente” ou “fatalidade”. A mulher negra já estaria atrás das grades, sem o direito de ter sua identidade preservada, de ampla defesa ou de "responder em liberdade". A própria Mirtes fala: Se fosse eu, minha cara estaria estampada em todos os lugares, meu nome bem grande, eu estaria pagando pelo meu erro.

Isso acontece porque os corpos brancos causam mais comoção. Os corpos brancos valem mais na sociedade racista em que vivemos. E consequentemente o corpo negro causa mais revolta e afloram os piores sentimentos de justiceiros. Fazendo uma citação de como a mídia é responsável por muitas vezes de manipular a opinião popular, nas matérias, o branco é sempre usuário de drogas, enquanto o negro é o traficante.

O caso de Miguel escancara um racismo que quase passaria por sutil se não tivesse ocasionado sua morte. Mirtes conta que quando chegou ao prédio e viu seu filho estirado no chão e foi socorrê-lo, uma testemunha  ouviu  Sarí dizer enquanto chegava no local do acidente "Que menino endemoniado!".
Ou seja, se Miguel não tivesse morrido, a negligência com uma criança de 5 anos ocasionada pelo racismo da elite brasileira, ficaria no campo da sutileza de culpar uma criança arteira pelas próprias ações.
Não é negligência simples, não é falta de paciência. É RACISMO.
Miguel foi morto pela eterna negligência da elite brasileira. Sarí não achou que valeria a pena ser firme e insistir para o menino ficar e esperar a mãe voltar. Ela não tentou acalmá-lo, ofereceu um abraço, prometeu um doce, nem ao menos tocou nele. Pra Sarí era só uma criança preta. Tantos não sabem se virar sozinhos?
Mirtes conta que até hoje não houve nem ao menos um pedido de desculpas, que Sarí chegou a ser sarcástica quando a encontrou na delegacia, falando coisas como "você foi trabalhar porque quis".

O racismo é desumanizador. Sojourner Truth em seu famoso discurso disse “e não sou uma mulher?", para revelar às pessoas brancas presentes em uma conferência sobre o sufrágio feminino norte-americano que a mulher preta nunca foi considerada uma mulher segundo os argumentos dos homens dali, ou seja, alguém que precisa de tutela e cuidados da sociedade. A mulher preta sempre foi a que trabalhou fora, que fez o trabalho pesado, que cuidou das crianças brancas, sem contar com nenhum tipo de ajuda ou gentileza.

Em 2014, Claudia Silva Ferreira foi arrastada por 350 metros, presa por uma parte do corpo ao camburão de uma viatura policial. Antes, ela havia sido baleada “por engano” por ter sido “confundida” com alguém possivelmente envolvido com o tráfico de drogas. Estava sendo levada para o hospital, então precisava de cuidados. Nenhum dos policiais se certificou em nenhum momento se ela estava bem. Aliás, o fato de colocar uma pessoa ferida que não se comprovou ser um “bandido” no porta-malas, largada, sozinha, já dá a entender que eles não estavam ligando para o bem-estar dela.
E se fosse uma mulher branca, a que Truth se refere que é merecedora de todos esses cuidados e tutela da sociedade não seria colocada no porta-malas, e possivelmente nem teria sido baleada.
Assim como as pessoas negras adultas, nossas crianças pretas também não são enxergadas como o que são: seres em formação que precisam de apoio, cuidados e paciência, como as crianças brancas deles.
É só olhar como os jovens são tratados pelo sistema de “correção”. O relato pessoal de um jovem no Twitter (confira aqui) viralizou há um tempo pela truculência e crueldade de agentes de estado que deveriam resgatar e reeducar crianças e adolescentes, não torturar e traumatizar para sempre. Assim sabemos que não é um caso isolado: é uma visão estrutural que alimenta a violência e as morte das pessoas pretas.
O genocídio começa desde antes do nascimento, com pré-natal, parto e pós-parto extremamente precários e racistas da saúde pública, pois mães pretas e, consequentemente suas crianças são menos assistidas que mães e crianças brancas. Caso ultrapassem a barreira desse primeiro descaso, muitas passam por inúmeras dificuldades familiares, sanitárias, econômicas, sociais e educacionais. E se conseguem sobreviver a isso, podem ser mortas pela violência antes de se tornarem adolescentes.
O estatuto da criança e do adolescente diz que a proteção às crianças deve ser prioridade da família, comunidade, sociedade em geral e poder público. Mas as crianças negras estão à margem desse direito. Sarí achou que Miguel não tinha prioridade de proteção naquele momento.
Não há possibilidade de existir qualquer tipo de justiça enquanto o racismo não for discutido e passado a limpo no nosso país. É preciso ter políticas educacionais efetivas para que crianças cresçam sem sofrerem ou cometerem racismo. O Estado deve garantir o acesso a todos os direitos básicos às nossas crianças negras. As punições a quem comete crimes de racismo e negligência evidentemente causada por ele devem ser rígidas, criar exemplos, para que não se repitam.
Vemos nas redes um grande despertar sobre o bem-estar das crianças pretas. Adultos negros estão buscando a cura de suas dores, encravadas em seus corações pela marginalização, pela herança da escravidão, pelas marcas da violência urbana. E estão conseguindo passar para seus filhos novas visões de vida, mais força, mais vitalidade e segurança. Crianças pretas podem ser o que quiserem ser, estar em todos os lugares, conquistar espaços. E a comunidade preta está constantemente trabalhando para mudar as novas gerações.
Estamos nos mexendo. Mas a branquitude precisa acordar para dar atenção à verdadeira raiz dos problemas sociais.

Toda nossa solidariedade às famílias pretas que perderam suas mães, seus pais e seus filhos assassinados. E um carinho especial à Mirtes, de quem mais falamos nesse texto, por ter perdido seu neguinho, como gostava de chamar Miguel, a alegria de sua vida.

Escrito por


Renata Balbino
Formada em Tradutora e Intérprete pela UNIBERO e especialista em finanças de empresas pelo Mackenzie, uma das mulheres à frente do Movimento Afro Vegano, integrante do bloco Ilú Obá de Min. Em constante busca de conhecimento antiespecista, antirracista, decolonial e anticapitalista







Thallita Flor
Graduanda em artes cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e extensionista no projeto "Teatro e Enclausuramento", no qual pesquisa o corpo cômico com os alunos do Instituto Penal Evaristo de Moraes. Palhaça na Companhia Mala de Mão desde 2016. Dona e chef de cozinha do Banana Buffet.




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